31 dezembro 2006

VIII Memória

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pela rosa passa
...um clarão
e cai-se
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Manuel Gusmão

28 dezembro 2006

X Visão

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Requiem For a Dream
Darren Aronofsky (2000)

22 dezembro 2006

VII Sonho

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[...]
o último sonho que tive era estranho
via o fundo límpido duma rua estreita
que desembocava num largo iluminado
havia leões empalhados nos passeios em areia solta
já não me lembro bem parece que uma mulher avançava com um envelope na mão
estendia-mo e gritava
mas eu não conseguia perceber
insultava-me muito provavelmente
tinha a cara escondida por um pano branco bordado
apenas via a sua enorme boca a abrir-se
e furiosamente engolir a púrpura do ar
que envolvia as cabeças reclinadas dos leões
ouvia o buzinar nervoso dos carros
exactamente como se ouvem agora
mas não conseguia vê-los
depois
um rapaz apareceu a uma esquina e reconheci-te
uma voz gravada na memória acompanhava-nos
quando nos dirigimos um para o outro
em câmara lenta
ouvíamo-la sussurrar: procuro-te
no interior das penumbras no esquecido sal
das casas abandonadas à beira-mar
procuro-te no perfume excessivo do mel
armazenado pelas abelhas no entardecer das pálpebras
vem
mergulha as mãos nos troncos das árvores
suspende a noite da longa viagem
estás a naufragar
o espelho quebrou-se e tu já não reconheces as paisagens
o corpo estilhaçou-se

tua presença só é visível nas fotografias dos barcos
as quilhas são a tua memória longínqua das Índias
vai
com os pássaros de bicos exuberantes e sonha
e estende o corpo cansado nos intervalos da erva fresca
onde alguém costurou pedras brancas na orla das grandes rotas
a cidade espera-te com os cais de madeira
junto ao rio abre as mãos toca nos corpos com os lábios
agarra-os dentro de ti
até que da terra lodosa brotem especiarias
porque só longe daqui acharás o que falta da tua identidade
só longe daqui conhecerás o sangue e talvez a felicidade
inundando um breve instante a noite de nossos desastres
só longe daqui
terás a consciência da quotidiana morte de Deus

repentinamente a voz cessou de se ouvir
eu tinha na palma da mão uma quantidade de comprimidos mortais
depois a voz fez-se ouvir a espaços irregulares: pobres unhas
pelas amarras húmidas dos lençóis rotos
barcos
velas sem sol papel pintado descolando-se das paredes
silêncio espesso sarro da noite
uma viatura arrasta-se boceja no asfalto
o corpo treme cintila
resíduos de cidade ruínas da pele buenas noches
buenas noches mi amor
lençóis floridos ranho cabeças de cafres
pingue-pingue de torneira avariada esferas de flipper
noches buenas noches
barcos despedaçados bolor da memória
da memória da memória da memória

tinhas a cara mascarada com sangue quando a voz silenciou
a mulher ria
eu corria para ti sem conseguir alcançar-te
sentei-me na cama
veio-me do fundo da idade o momento em que nos conhecemos
resolvi levantar-me a meio da noite e escrever-te esta carta
[...]
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Al Berto
Carta da Flor do Sol (a meu amigo)
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20 dezembro 2006

VII Memória

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segredava-te, do tempo o vão aspecto;
existias de noite como a letra
de todo o movimento, e das estrelas
o céu pintado ao fundo;
e distraído, às vezes, confessava
amar a tua pele como quem
quer dizer-te: não morras nunca mais.
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António Franco Alexandre
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18 dezembro 2006

IX Visão

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Ferro 3
Kim Ki-Duk (2004)


14 dezembro 2006

VI Memória

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Ficávamos no quarto até anoitecer, ao conseguirmos
situar num mesmo poema o coração e a pele quase
podíamos
erguer entre eles uma parede e abrir
depois caminho à água.

Quem pelo seu sorriso então se aventurasse achar-se-ia
de súbito em profundas minas, a memória
das suas mais longínquas galerias
extrai aquilo de que é feito o coração.

Ficávamos no quarto, onde por vezes
o mar vinha irromper. É sem dúvida em dias de maior
paixão que pelo coração se chega à pele.
Não há então entre eles nenhum desnível.
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Luís Miguel Nava
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06 dezembro 2006

VIII Visão

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Spider
David Cronenberg (2002)
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VI Sonho

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Havia borboletas. Entravam pelas fechaduras das casas e ao chegar lá dentro evaporavam-se em cores lilases e amarelas, dando constantemente outro aspecto ao interior. Pastoras e prados em cima das mesas, por baixo dos cinzeiros. Uma pereira a tentar desesperadamente crescer na estante entre dois livros. Um oceano boiando por baixo da carpete. Barcos e vento subindo e descendo o corredor. As facas da cozinha talhando grutas no azulejo. E cada tecto evaporado, uma vertigem, lágrimas pingando da torneira para o lavatório, toda a noite, toda a noite.
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Manuel Cintra
Do Lado de Dentro
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