14 março 2007

XI Sonho

.

Desde o alto da rua Barata Salgueiro recomeço a voar. Digo «recomeço» porque no meu sonho há lembrança nítida de incursões semelhantes, iniciadas sempre nesta rua. Quando começo a correr para «levantar», a habitual sensação de não estar certo de poder fazê-lo ainda uma vez mais. Lançado no espaço, voo a baixa altura, quase entre o trânsito das ruas. Depois ganho altura, entro no espaço abstracto, sem imagens, que será para o homem o voo puro. Os meus braços abertos são os reguladores da direcção.
Desço, quase a rasar o solo, sobre a avenida da República, em direcção ao Saldanha, que oferece o seu aspecto habitual num fim de tarde de verão. Vinda da avenida Fontes Pereira de Melo e voando baixo como eu, surge uma mulher magnífica, solene, com um longo fato de renda negra cujo ondear a continua no espaço. Reunimo-nos sem trocar palavra, fitando-nos apenas, e, sem desvio na direcção comum, lado a lado traçamos lentamente dois círculos concêntricos à estátua de bronze, em baixo, afligida de grande circulação automóvel. Depois tomamos pela avenida Duque de Ávila, em direcção ao Arco do Cego, e sonho que acordo em casa do José Cardosos Pires, no Largo de Arroios. O dono da casa saúda-me jovialmente, não estranhando a minha súbita presença no seu quarto de estudante.

Mário Cesariny
excerto de "passagem dos sonhos"

visto nos Dias Felizes
.

Sem comentários: