14 dezembro 2007

XXX Memória


Já não pertenço àquele tempo em que se brincava na rua e se empurrava os putos pela ribanceira abaixo. Nasci na cidade, o infantário ficava no segundo andar e o ATL estava à proximidade de uma rua perpendicular. A escola primária, essa, ficava pouco mais longe. Mas não havendo pátios em caminho para jogar ao berlinde, nem grandes áreas verdejantes para correr e fazer o pino, o pessoal contentava-se com as paredes domésticas e as das escolas onde era obrigada a passear as fatiotas.


Ora bem. Do que eu gostava era de ser tirana. Gostava do poder e do exercício do mesmo. E, como tirana, eu safava-me bem. Garante a minha mãe, que ao contrário de mim nunca mente, que eu alinhava todas as minhas 20 bonecas no sofá da sala e desatava à bofetada. Trra-ta-ta-ta-ta-ta-ta-tau! Aquilo era distribuir bordoadas irmãmente. E barafustava, tinha verdadeiros motivos para lhes puxar os cabelos e esmagar-lhes as cabeças. Ainda hoje do que eu mais gosto é de descarregar a minha raiva nos outros. Mudei de método, claro. Desatar à tareia era capaz de trazer algumas consequências menos agradáveis para o meu lado. Para exercer a minha tirania, também me disfarçava de professora. Fazia ditados às minhas amigas, que eu sabia que escreviam mal, para ter o prazer de corrigir no fim. Também mandava fazer desenhos, porque eu tinha a mania que eu é que era a artista.


Na escola, tinha três brincadeiras preferidas: matar minhocas, adaptar músicas da moda, reescrevendo-as a começar com “saí de casa, blá blá blá…” (o sonho continua) e fazia o pino na parede. Tentava ir sempre que possível de saia, para mostrar as cuecas. Para pinar mostram-se as cuecas, não é? Bom. Lembro-me de certo dia estar eu e uma amiga nesses preparos, que é como quem diz uma ao lado da outra de pernas para o ar e cuequinha à mostra, e passar uma professora e exclamar “que pouca vergonha!”. Com toda a razão.


Contudo, aquilo que eu mais gostava de fazer era beijar miúdas. Todos os pretextos eram bons. Brincar aos médicos, por exemplo. Se eu fosse a médica, podia salvar a minha amiga do afogamento e tinha direito a exercer a preciosa respiração boca-a-boca. Se eu estivesse em apuros…bem, não preciso de continuar. Eu gostava de estar em apuros. Entrava no consultório e dizia “ó doutora, tenho uma dorzinha aqui…não, aí, não, aqui, aqui…”. Sabidolas. Desde pequena a torcer o pepino. Bom. Eu sorrio comprometedoramente sempre que alguém me pergunta quando dei o meu primeiro beijo. Agora já sabem porquê. Lembro-me que fiquei muito desapontada quando a minha principal companheira das beijocas se armou em adulta ou lá o que era e me disse “não, temos de parar com isto, já não somos crianças”, ao que eu respondi “não, eu acho que é ao contrário! Agora que somos crescidas é que devíamos fazer isto mais vezes!”. Eu é que tinha juízo. Alguém me imagina quietinha no meu lugar, santinha aos olhos de Deus? Não desisti da catequese para ficar de mãos atadas. Oops. A verdade é que fiquei muito deprimida quando, já adulta e em conversa com as minhas colegas, percebi que nem todas as miúdas eram assim. Mummy, there’s something wrong with me!


Resumindo, as minhas ocupações passavam por ser tirana, dar tabefes, mostrar as cuecas e beijar miúdas. Não mudou muito desde aí.


Graças a Deus, os putos hoje têm Playstations.

1 comentário:

Anónimo disse...

ópá, tenho boas recordações da infância, mas não chegam aos calcanhares das tuas!!!!

muito, mas muito mais animada :-)