28 novembro 2006

V Memória

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Às vezes, nos momentos trágicos, já não é contigo que eu deparo - é com outro ser que assiste sempre, como um espectador, a todos os meus exageros. Deitavas-te comigo, levantavas-te comigo, ferrada como um punhal - e não existias. Neguei-te. Expliquei-te. Reduzi-te às tuas verdadeiras proporções - e tu não existias! Atormentaste-me e fizeste-me sofrer mesmo quando já compreendera que não existias. E agora mesmo, quando o universo é outro universo, ainda encarniças sobre em mim como um fantastma.

Escusas de te rir - tu não existes.
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Raul Brandão
Húmus
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VII Visão
















Sous le Sable
François Ozon (2000)
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25 novembro 2006

V Sonho

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25 de Agosto, 1983

Vi no relógio da pequena estação que já passava das onze horas da noite. Fui andando até ao hotel. Senti, como noutras alturas, a resignação e o alívio que nos infundem os lugares familiares. O amplo portão estava aberto; a quinta, às escuras. Entrei no vestíbulo, cujos espelhos pálidos reflectiam as plantas do salão. Curiosamente, o dono não me re­conheceu e estendeu-me o registo. Peguei na caneta que estava presa ao balcão, molhei-a no tinteiro de bronze e, ao inclinar-me sobre o livro aberto, ocorreu a primeira surpresa das muitas que se me deparariam nessa noite. O meu nome, Jorge Luis Borges, já estava escrito, e a tinta, ainda fresca.
O dono disse-me: — Julguei que o senhor já tivesse subido. Após o que me olhou atentamente e corrigiu:
— Desculpe, senhor. O outro é tão parecido, mas o senhor é mais jovem.
Perguntei-lhe: - Com que quarto é que ele ficou? - Pediu o quarto dezanove — foi a resposta. Era o que eu temera.
Larguei a caneta, e subi a correr as escadas. O quarto 19 ficava no segundo piso e dava para um triste pátio descurado, no qual havia uma grade e, recordo-o, um banco de jardim. Era o quarto mais alto do hotel. Abri a porta, que cedeu. Não tinham apagado o pequeno lustre. Debaixo da desapiedada luz, reconheci-me. De costas, na estreita cama de ferro, mais velho, enfraquecido e muito pálido, estava eu, os olhos perdi­dos nos altos ornamentos de gesso. Chegou-me a voz. Não era exacta­mente a minha; era a que costumo ouvir nas minhas gravações, ingrata e sem matizes.
- Que estranho — dizia —, somos dois, e somos o mesmo. Mas nada é estranho nos sonhos.
Perguntei assustado: - Então, tudo isto é um sonho? - É, estou convicto, o meu último sonho.
Com a mão, indicou o frasco vazio sobre o mármore da mesa-de­cabeceira.
— Tu ainda terás muito que sonhar, antes de chegares a esta noite. Em que datas estás?
- Não sei muito bem — disse-lhe aturdido. — Mas ontem fiz sessenta e um anos.
- Quando a tua vigília chegar a esta noite, terás feito, ontem, oitenta e quatro. Hoje, estamos a vinte e cinco de Agosto de mil novecentos e oitenta e três.
- Tantos anos haverá que esperar — murmurei.
- A mim já nada me sobra — disse com brusquidão. — Posso mor­rer a qualquer momento, posso perder-me no que não sei, e continuo a sonhar com o duplo. O tema gasto que me deram os espelhos e Stevenson.
Senti que a evocação de Stevenson era uma despedida e não um rasgo pedante. Eu era ele, e compreendia. Não bastam os momentos mais dramáticos para se ser Shakespeare e encontrar frases memoráveis. Para o distrair, disse-lhe:
- Sabia que isto te ia acontecer. Aqui mesmo, há anos, num dos quartos de baixo, iniciámos o rascunho da história deste suicídio.
— Sim — respondeu-me lentamente, como se juntasse recordações. — Mas não vejo a relação. Nesse rascunho, eu tinha comprado uma passagem de ida para Adrogué e, já no Hotel Las Delicias, tinha subido ao quarto dezanove, o mais afastado de todos. Aí, suicidara-me. — Por isso, estou aqui — disse-lhe.
- Aqui? Estamos sempre aqui. Aqui estou eu, a sonhar-te na casa da Rua Maipú. Aqui estou a passar-me, no quarto que foi da mãe.
- Que foi da mãe — repeti, sem querer entender. — Eu sonho-te no quarto dezanove, no pátio de cima.
- Quem sonha quem? Eu sei que te sonho, mas não sei se me estás
a sonhar. O hotel de Adrogué foi demolido há já tantos anos, vinte, tal­vez trinta, quem sabe.
- O sonhador sou eu — repliquei, com certo desafio.
- Não te dás conta de que o fundamental é averiguar se há um só homem a sonhar ou dois que se sonham.
- Eu sou Borges, que viu o teu nome no registo e subiu.
— Borges sou eu, que estou a morrer na Rua Maipú. Houve um silêncio, o outro disse-me:
— Vamos tirar a prova. Qual foi o momento mais terrível da nossa vida?
Inclinei-me sobre ele e falámos os dois ao mesmo tempo. Sei que os dois mentimos.
Um ténue sorriso iluminou-lhe o rosto envelhecido. Senti que esse sorriso reflectia, de algum modo, o meu.
— Mentimo-nos — disse-me —, porque nos sentimos dois e não um. A verdade é que somos dois e não um.
Essa conversa irritou-me. De modo que lho disse. E acrescentei:
— E tu, em mil novecentos e oitenta e três, não vais revela-me nada sobre os anos que me faltam?
— Que posso dizer-te, pobre Borges? Repetir-se-ão as desditas a que já estás habituado. Ficarás sozinho nesta casa. Passarás as mãos pelos livros sem letras e pelo medalhão de Swedenborg e pela bandeja de madeira com a cruz federal. A cegueira não é a treva; é uma forma de solidão. Voltarás à Islândia.
— Islândia! Islândia dos mares!
— Em Roma, repetirás os versos de Keats, cujo nome, como o de todos, foi escrito na água.
— Nunca estive em Roma.
— Também há outras coisas. Escreverás o nosso melhor poema, que será urna elegia.
— À morte de... — disse eu. Não me atrevi a dizer o nome. — Não. Ela viverá mais que tu.
Ficámos silenciosos. Prosseguiu:
- Escreverás o livro com o qual temos sonhado tanto tempo. Por volta de mil novecentos e setenta e nove, compreenderás que a tua su­posta obra mais não é do que uma série de borrões, uma miscelânea, e cederás a vã e supersticiosa tentação de escreveres o teu grande livro. A superstição que nos infligiu o Fausto de Goethe, a Salambo, o Ulisses. Enchi, por mais incrível que pareça, muitas páginas.
— E, por fim, compreendeste que tinhas fracassado.
- Pior. Compreendi que era uma obra-prima, no sentido mais opressor da palavra. As minhas boas intenções não tinham passado das primeiras páginas; nas outras estavam os labirintos, remendos, o homem que cria para si uma imagem, o reflexo que se crê verdadeiro, o tigre das noites, as batalhas que acabam em sangue, Juan Muraña cego e fatal, a voz do Macedonio, a nave feita com as unhas dos mortos, o inglês antigo repetido nas tardes.
— Esse museu é-me familiar — observei com ironia.
— E ainda, as falsas recordações, o jogo duplo dos símbolos, as longas enumerações, o bom manuseamento do prosaísmo, as simetrias imperfeitas, que os críticos descobrem com alvoroço, as citações nem sempre apócrifas.
- Publicaste esse livro?
- Joguei, sem convicção, com o propósito melodramático de o destruir, eventualmente pelo fogo. Acabei por publicá-lo em Madrid, sob pseudónimo. Falou-se de um torpe imitador de Borges, que tinha o defeito de não ser Borges e de ter repetido o exterior do modelo.
- Não me surpreende — disse eu. — Todo o escritor acaba por ser o seu discípulo menos inteligente.
- Esse livro foi um dos caminhos que me trouxeram a esta noite. Quanto aos outros... A humilhação da velhice, a convicção de já ter vivido cada dia...
- Não escreverei tal livro — disse.
- Escrevê-lo-ás. As minhas palavras, que são agora o presente, serão apenas a memória de um sonho.
Incomodou-me o seu tom dogmático, sem dúvida o que uso nas minhas aulas. Incomodou-me que nos parecêssemos tanto e que ele aproveitasse a impunidade que lhe dava a proximidade da morte. Para me libertar, disse-lhe.
- Tens mesmo a certeza de que vais morrer?
— Sim — replicou-me. — Sinto uma espécie de doçura e de alívio, que nunca senti. Não posso comunicá-lo. Todas as palavras requerem uma experiência partilhada. Porque é que aquilo que te digo parece incomodar-te tanto?
- Porque nos parecemos demasiado. Tenho aversão à tua cara, que é a minha caricatura, tenho aversão à tua voz, que é o meu arremedo, tenho aversão à tua sintaxe patética, que é a minha.
- Eu também — disse o outro. — Por isso resolvi suicidar-me. Um pássaro cantou na quinta.
— E o último — disse o duplo.
Com um gesto, chamou-me para o seu lado. A sua mão procurou a minha. Retrocedi; temi que ambas se confundissem.
Disse-me:
- Os estóicos ensinam que não nos devemos queixar da vida; a porta da prisão está aberta. Sempre assim o entendi, mas o tédio e a cobardia demoraram-se. Aí há uns doze dias, dava eu uma conferência em La Plata sobre o livro quarto da Eneida. De repente, ao escandir um hexâmetro, soube qual era o meu caminho. A partir desse momento, senti­me invulnerável. A minha sorte será a tua, receberás a brusca revelação, no meio do latim e de Virgílio e já terás completamente esquecido este curioso diálogo profético, que decorre em dois tempos e em dois lugares. Quando voltares a sonhá-lo serás o que sou e tu serás o meu sonho.
— Não o esquecerei, e vou escrevê-lo amanhã.
— Ficará no mais profundo da tua memória, debaixo da maré dos sonhos. Quando o escreveres, julgarás estar a urdir um conto fantástico. Não será amanhã, ainda te faltam muitos anos.
Deixou de falar, compreendi que tinha morrido. De certo modo eu morria com ele; inclinei-me aflito sobre a almofada e já não havia ninguém.
Fugi do quarto. Lá fora não estava o pátio, nem as escadas de mármore, nem a grande casa silenciosa, nem os eucaliptos, nem as estátuas, nem o caramanchão, nem as fontes, nem o portão da grade da quinta na povoação de Adrogué.
Lá fora, esperavam-me outros sonhos.


Jorge Luís Borges,
O outro, o mesmo
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IV Memória

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[...]
O que há horrível no teu corpo diurno
é a sua avareza de palavras
és tu inutilmente iluminado e quente
como um resto saído de outras eras
que te fizeram carne e se foram embora
porque verdade sem erro certo verdadeiro
nada era noite bastante para tocarmos melhor
as nossas mãos de nautas navegando o espaço
os corpos um e dois do navio de espelhos
filhos e filhas do imponderável
de cabeça para baixo a ver a terra girar
[...]
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Mário Cesariny
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23 novembro 2006

VI Visão

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Nan Goldin
Self-Portrait on the Train
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20 novembro 2006

IV Sonho

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... estou a subir com o amor ao colo - o Amor está quase a cair.
É com o que eu sonho,
o amor de pé,
o amor falcão, Aramis,
o amor sem a resistência do ar,
ou da gravidade e,
alguém, talvez tu, me diz, a meu lado:
«queria fazer amor contigo, e ando à procura de outra coisa.»
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Maria Gabriela Llansol
O Raio sobre o lápis

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V Visão

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Leaving Las Vegas
Mike Figgis (1996)
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III Sonho

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[…] Está a começar o terror. Agora, pega no giz e começa a desenhar números, seis, sete, oito, e depois uma cruz e só então uma linha […] Apenas vejo números … não tenho respostas. Deixaram-me sozinha para que encontrasse resposta. Os números não têm qualquer sentido. O sentido desapareceu. O relógio … Os dois ponteiros são como caravanas a atravessar o deserto […] A porta da cozinha bate. Os cães vadios ladram lá longe […] A forma redonda do número começa a encher-se com o tempo; o mundo está todo lá contido. Comecei a traçar um número, o mundo está lá dentro e eu fora do laço. Acabo por o fechar – assim – selando-o, tornando-o inteiro. O mundo está completo e eu estou de fora, a gritar […]
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Virginia Woolf
As Ondas
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17 novembro 2006

IV Visão
















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Mulholland Drive
David Lynch (2004)
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16 novembro 2006

III Memória

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talvez num dia
em que de mim já nada exista
te lembres de dois braços
que te abraçavam convulsivamente
nessa altura
deixa que os lábios te sangrem
deixa que o sangue te corra pelo peito

e as mãos
essas
abandona-as...
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Mário-Henrique Leiria
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III Visão
















Disponível para amar
Wong Kar Wai (2000)

II Memória


a memória é hoje uma ferida
levaste somente o fogo que atearas dentro de mim

no entanto, recordo: deixaste-me sobre a pele um rasgão que já não dói. mas quando a memória da noite consegue trazer-te intacto, fecho os olhos, o corpo e a alma latejam de dor.


Al Berto
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15 novembro 2006

II Visão















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The End of the Affair
Neil Jordan (1999)
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II Sonho

- Estávamos a atravessar uma estrada perigosa.
Queria que tu e as meninas se agarrassem a mim.
Mas não tinha mãos. Só cotos. E estou a deslizar
em areia macia. Tu estás na estrada e eu não
consigo alcançar-te.


Cenas da Vida Conjugal
de Ingmar Bergman


14 novembro 2006

I Visão

Persona
Ingmar Bergman (1966)
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I Memória

Hoje a obsessão foi mais forte. Escrever-te. A nossa história que contei parecia-me intocável. Princípio e fim de nós nela, a tua morte selara-a para sempre. E todavia é nessa eternidade que a tua memória me perturba e a imagem terna do teu encantamento.
[...]
Na realidade nunca te esqueço no dia a dia que te esquece. Mas ficas um pouco ao lado, à espera de que eu volte de novo a olhar-te.
[...]
Às vezes eu pensava que tu não fazias ideia do incrível e maravilhoso de ti. Estavas dentro e o teu esplendor estava fora. Nesta casa deserta, como é bom estares aqui comigo.


Vergílio Ferreira
Cartas a Sandra
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I Sonho

....... À noite tive um sonho incómodo onde se representavam umas escadas de pedra; do cimo delas, eu fazia um sinal imperceptível de despedida a alguém que se afastava em baixo. Atravessei portas que se abriam e fechavam à minha passagen sem eu lhes tocar. Depois senti-me cair de um telhado que lentamente se inclinava e por onde eu ia rolando. Havia um pântano no fundo, e mergulhei nele. Durante o sono, a mão direita agarrava um punhado de brasas. Acordei bruscamente e acendi a luz. A mancha alargara; uma outra, ainda mais intensa, enchia-me a palma da mão.


Herberto Helder
Os Passos em Volta